Hoje o assunto é mitologia, e eu vim trazer 5 figuras mitológicas conhecidas por suas relações com pessoas do mesmo sexo. Para se aprofundar nesse assunto, eu indico que os leitores busquem os contextos históricos e sociais de cada lugar de os mitos a seguir vêm, para assim poderem entender como os viventes daquele tempo lidavam com isso. Dito isso, vamos começar.
• Loki •
Loki é o deus nórdico da travessura, magia e trapaça. Ele possui a capacidade de assumir a forma que quiser, habilidade essa que chamamos na escrita criativa de Metamorfose. Inclusive, o fato dele ter este poder é exatamente o que rodeia a história de um de seus filhos, Sleipnir, o cavalo de oito patas de Odin e mais veloz do mundo.
Tudo começou quando um gigante de gelo — que iremos chamar de smíðrinn (Smidrinn), pois significa "o construtor" ou "o mestre construtor" em nórdico antigo, — visto que seu nome de fato não é mencionado nas fontes originais — se disfarçou de pedreiro e se ofereceu para reconstruir a muralha em torno de Asgard, reino celestial dos Æsir. Em troca, o pedreiro pediu o sol, a lua e a mão da deusa Freya (do amor, da beleza, da fertilidade, da guerra e da magia, especialmente o tipo de magia chamado seiðr, pronuncia-se 'SAY-der').
Os deuses aceitaram e deram o prazo de um inverno para reconstruir a muralha que já estava caindo aos pedaços, mas ele tinha que terminar antes do primeiro dia de verão. Acontece que o que os deuses não esperavam era que o gigante estava conseguindo terminar a tarefa muito rápido, os deixando com uma pulga atrás da orelha, até que descobriram que era o cavalo Svadilfari quem estava fazendo todo o trabalho pesado transportando enormes pedras. Ao ser desmascarado, Smidrinn começa a destruir a muralha de raiva, revelando sua forma de jötunn, um gigante de gelo. Foi neste momento que o deus do trovão, Thor, avançou em sua direção e o matou com seu martelo Mjolnir.
É agora que entra o porquê de Loki estar nessa lista. O deus da mentira, na intenção de salvar Asgard de perder o sol e a lua, e também de salvar Freya, se transformou em uma linda égua para seduzir e distrair o cavalo para longe de Smidrinn, impedindo que ele terminasse seu trabalho. Neste processo, Loki ficou grávido como consequência, dando à luz um cavalo de oito pernas chamado Sleipnir.
Você até pode imaginar como os deuses de Asgard reagiram a tudo isso, mas não foi com zombarias nem nada negativo. Pelo contrário, Odin acolheu Sleipnir com grande alegria, pois o cavalo era um presente incrível, conseguindo viajar entre os mundos.
No contexto da sociedade atual, a comunidade LGBT considera Loki como uma figura gênero-fluida. Porém, enquanto a mudança de gênero em indivíduos gênero-fluidos ocorre de forma psicológica, o caso de Loki (por sinal, fictício) ocorreu de forma mística, por meio da metamorfose. Além disso, Loki também é visto pela comunidade como pansexual, por se envolver com qualquer tipo de ser e de qualquer sexo.
• Aquiles e Pátroclo •
![]() |
Ilustração de Shouty |
Aquiles foi um herói grego considerado o mais belo dentre todos os heróis reunidos contra Troia, sendo ainda visto como o melhor dentre todos os guerreiros na Guerra de Troia. Na Ilíada (poema épico da Grécia Antiga), Pátroclo era um amigo íntimo de Aquiles, e sua relação era extremamente próxima, profunda e emocionalmente carregada.
Ao longo da história, muitos autores e estudiosos, incluindo na Antiguidade Clássica, interpretaram a amizade dos dois como possivelmente erótica ou romântica. Essa ideia é aceita pelo fato de que na Grécia Antiga existia a prática da pederastia, um tipo específico de relação erótica e pedagógica entre um homem adulto (nomeado como erastes) e um jovem (nomeado de eromenos).
É importante dizer que nem todas as relações entre homens e garotos eram comuns, sendo a pederastia um costume social e regulamentado daquela época e daquela região. A amizade ou relação íntima masculina na Grécia não era apenas erótica, havendo uma distinção entre amizade intensa, pedagogia, lealdade e erotismo.
Ao longo da história, muitos autores e estudiosos, incluindo na Antiguidade Clássica, interpretaram a amizade dos dois como possivelmente erótica ou romântica. Essa ideia é aceita pelo fato de que na Grécia Antiga existia a prática da pederastia, um tipo específico de relação erótica e pedagógica entre um homem adulto (nomeado como erastes) e um jovem (nomeado de eromenos).
É importante dizer que nem todas as relações entre homens e garotos eram comuns, sendo a pederastia um costume social e regulamentado daquela época e daquela região. A amizade ou relação íntima masculina na Grécia não era apenas erótica, havendo uma distinção entre amizade intensa, pedagogia, lealdade e erotismo.
Ainda assim, na Ilíada de Homero, não há menção explícita de que Aquiles e Pátroclo eram amantes no sentido sexual, sendo apresentados apenas como amigos muito próximos, sem haver sexualização no texto. Essa interpretação homoafetiva surgiu mais tarde, especialmente no período clássico grego (séculos V-IV A.E.A), quando a pederastia já era uma prática comum.
Autores como Ésquines e Platão refletiram essa teoria depois, sugerindo que Aquiles teria amado Pátroclo da maneira de um erastes por seu eromenos. Porém, há versões em que Pátroclo é mais velho que Aquiles e não o contrário, o que complica um pouco a associação direta entre eles e o modelo padrão de pederastia. Sendo assim, permanece em aberto se a relação deles deve ser lida de forma romântica, platônica ou heroica.
Dessa forma, a comunidade LGBT adotou os dois como ícones homossexuais.
• Ártemis e Calisto •
![]() |
Pintura de François Boucher |
Calisto era uma bela jovem ninfa devota à deusa Ártemis. Zeus era fascinado pela beleza de Calisto, e ela era a mais amada por Ártemis dentre todas as outras. Um dia, quando Calisto pôs-se a deitar em uma clareira, Zeus tomou a forma de Ártemis e aproximou-se da ninfa. Quando o deus conseguiu a confiança de Calisto, se aproximou da mesma e beijou-a e abraçou-a. Porém, sem querer, ele voltou à sua forma masculina e a violentou.
As versões antigas da história não deixam claras se houve sedução consensual ou violência sexual, mas considerando contexto da mitologia grega — onde transformações, enganos e violência sexual são temas recorrentes — muitos estudiosos tratam esse episódio como um estupro.
Calisto fugiu de Zeus e acabou encontrando a verdadeira Ártemis, que caçava com seu cortejo. Juntando-se a elas, Calisto estava quieta, cabisbaixa e corada, pois acabara violando seu voto de castidade à Ártemis por culpa de Zeus. Contudo, a deusa só percebeu o que aconteceu nove luas depois, quando ela e seu cortejo se reuniram para se banharem juntas e Calisto se escondeu por conta de sua barriga de grávida. A deusa interpretou a gravidez como quebra de voto, sem considerar que foi contra a vontade de Calisto, e a expulsou de seu cortejo. Depois de um tempo, Calisto deu à luz Arcas.
Não há registros antigos que descrevam explicitamente Calisto como "apaixonada" romanticamente por Ártemis. O amor que Calisto tinha era de devoção religiosa, não necessariamente amor romântico. Porém, em leituras modernas, a comunidade LGBT tomou a ninfa como uma representação sáfica (lésbica) na mitologia.
Ainda com tudo o que Zeus comete de monstruoso dentro da mitologia grega, ele não era considerado um "vilão" no sentido que as pessoas atualmente pensam. No entanto, de uma perspectiva contemporânea, suas ações são extremamente condenáveis, e é muito comum chamá-lo de "vilão" ao recontar esses mitos hoje.
• Jacinto •
![]() |
Ilustração de Catbishonen |
Jacinto (ou Hyacinthus) era um jovem mortal muito amado pelas divindades, filho do rei Amiclas de Esparta e da Musa Clio. Ele era ainda mais amado pelo deus do sol, da música e da medicina, Apolo, que o seguia aonde quer que ele fosse. Um dia, Apolo e Jacinto se divertiam com um jogo de lançamento de disco de pedra. Apolo lançou o disco tão forte ao céu, que Jacinto, maravilhado, correu para apanhar o disco onde quer que caísse. Porém, Zéfiro — o vento-oeste — também era apaixonado pelo jovem e, enciumado pela preferência de Jacinto por Apolo, mudou a trajetória do disco para que atingisse o rapaz. Com o impacto do disco na cabeça ou têmpora de Jacinto, o mesmo caiu morto no chão. Desesperadamente, Apolo correu até ele e tentou usar suas habilidades médicas para salvar Jacinto, mas foi em vão.
Apolo se sentiu culpado pela morte de Jacinto e o imortalizou em seu canto. Sua lira iria celebrá-lo, seu canto entoaria a canção de seu destino e ele se transformaria numa flor. Assim, o sangue de Jacinto fez uma linda flor surgir. A flor com o púrpura mais belo já visto. Nela foi gravada a saudade, o lamento e o pesar de Apolo. A flor carrega o nome de Jacinto e renasce todas as primaveras, relembrando seu destino.
Algumas versões antigas dizem que as pétalas da flor tinham marcas ou letras (como "AI", que em grego é uma interjeição de lamento, tipo "Ai, ai!").
Zéfiro, sim, agiu por ciúmes e posse, mas o mito grego original é mais sutil: por mais que venha a ideia de que o vento-oeste pensou "se eu não posso te ter, então ninguém pode", é o ciúme cego que causa tragédia, sem necessariamente a ideia consciente de matar.
Com tudo isso, Jacinto, Zéfiro e Apolo se tornaram ícones vistos como homossexuais pela comunidade LGBT.
Muito obrigado por terem aguentado todos os parágrafos, e até a próxima!
11 Comentários
Que interessante, os mitos antigos realmente trazem muitas histórias de uniões homoafetivas e da sua lista a que mais gosto é a de Jacinto e Apolo. Muito bonita mas tb muito triste.
ResponderExcluirinfelizmente alguns finais não são tão felizes como gostaríamos, mas ainda há histórias de amor para nos encher de esperança ❤❤❤❤
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAs pessoas têm tantas coisas únicas a mostrar ao mundo, mas a sociedade quer que elas prendam essas virtudes. ❤
ExcluirEntão, na verdade, na verdade, a Lunna te deu uma informação bem errada aí em cima, viu? Os gregos não acreditavam na "bissexualidade". Primeiro que depende do período histórico e qual localidade grega você fala: existem alguns períodos que são voltados a homoafetividade e outros a um padrão heteronormativo; bem como os locais, a Grécia não era uma unidade, eram cidades estados com valores diferentes, embora uma língua e cultura comuns. A especulação do Aquiles com o Pátroclo não se fundamenta muito em relação ao canto homérico, porque foi um canto oral passado por gerações e especulasse que o período de Homero tinha um padrão heteronormativo, e você encontra isso em todos os personagens citados na Ilíada e na Odisseia. Ou seja: é um texto corrompido em que pode ou não pode ser (mas provavelmente não pela questão do desejo do Aquiles pela Briseida e como ele a via quase como uma "esposa").
ResponderExcluirAlguns estudiosos pressupõe isso, mas não são legitimados pela academia porque não tem nenhuma prova concreta no texto. Em relação aos períodos de homoafetividade, são períodos em que existia um maior desprestígio a figura feminina: a mulher não era considerado um "ser comparado a um homem". Sendo assim, ter prazer com uma mulher era rebaixar-se, da mesma forma que com um escravo. A mulher era meramente receptáculo de procriação nesses períodos (não que em outros períodos fosse valorizada, claro, mas nesses períodos era pior, além disso, era perpetuado pelo "ginásio", em que os jovens eram iniciados na arte do prazer pelos mais velhos). Infelizmente. Porém, ao mesmo tempo que elas não poderiam ter prazer com os homens, elas tinham prazer com outras mulheres. Reza a lenda que Safo era lésbica e se apaixonou por uma de suas discípulas, muito embora tivesse tido uma filha.
Os gregos de fato não são preto no branco, principalmente, porque você tem o princípio cretense anterior ao século XII a.C. e você vai ter Platão em V a.C. e depois tem o período Helenístico, +/- 320 a.C.: são séculos que mudam percepções entre os gregos e a homoafetividade - entre outras coisas -, assim, o erotismo entra num desses aspectos sociais.
Por isso, recomendo você pesquisar mais sobre a temática se te interessar, tem diversos livros a respeito da Homoafetividade na Grécia e em Roma. Principalmente, entre os romanos. Mas os gregos tinham relações lindas dentro dos mitos. A título de curiosidade, como você teve uma mudança muito grande dentro dos períodos históricos, com exceção de Poseidon - se eu não me engano - todos os deuses do sexo masculino tiveram relações com homens e mulheres. ;)
Amei entender mais do pensamento histórico sobre a homoafetividade que você apresentou. Obrigado pela ajuda mana ❤❤❤❤❤❤❤❤
ExcluirAdorei o post. Me lembrou inclusive um "causo" do meu ensino médio: Houve uma palestra com duas professoras de filosofia na escola que eu estudava (filosofia não fazia parte da grade na minha época) e elas começaram a falar sobre Platão e sobre a Grécia - A mitologia grega sempre me encantou e a filosofia também - Eis que eu comento que li no livro "O Banquete" uma passagem que falava sobre essa prática de manter um jovem amante como forma de instruí-lo. As duas professoras ficaram um pouco impactadas e me chamaram no final para conversar um pouco sobre o assunto...
ResponderExcluirMeus deuses, deve ter sido embaraçoso pra elas ouvir uma jovem falando sobre isso. Mas a gente tem é que normalizar mesmo que os adolescentes leiam e conheçam sobre isso. Se deixamos os jovens lerem 50 Tons de Cinza, por que não deirxá-los ler um pouco da cultura grega? ❤❤❤❤❤❤
ExcluirConhecia vários desses nomes porque num ano no ensino médio tivemos que pesquisar nomes de figuras da mitologia e escolher um deles para ser o nome da nossa sala hehe. Inclusive, o nome foi Artemis :)
ResponderExcluirAchei muito legal conhecer a história deles. Eu gosto bastante do Loki, e isso antes mesmo de eu conhecer ele como um vilão do MCU hihi.
Adoro seus posts, sempre me ensinam bastante
Muito válido e útil esse post, inclusive porque há quem diga "no meu tempo não tinha isso", " os jovens de hoje é que são sem vergonhas" e outras baboseiras do tipo. Acho importante as pessoas saberem que a homoafetividade remota aos primórdios da humanidade, é algo que sempre existiu porque simplesmente faz parte de quem o ser humano é. Das histórias contadas no post, já conhecia as de Aquiles e Pátroclo, Ártemis e Calisto e da Jacinto, porque adoro mitologia grega e leio muito sobre. Achei incrível a história do Loki, nem imaginava e também não conhecia Gwydion, achei bem interessante a história.
ResponderExcluirQue belo post! E super bem informativo.
ResponderExcluirNão sabia dessa relação entre Ártemis e Calisto. Adorei!
Aguardo os próximos <3
Beijinhos e boa semana
Isabelle
https://blogalgodotipo.wordpress.com/
Comente aqui!