Fait-Divers, os Jornalistas de Curiosidades e Fatos Diversos

"Quando o anônimo se torna digno de notação, algo parece suspeito. O efêmero deixa de ser banal, quando algo vem confundir a ordem aparente das coisas. O fait divers, crônica do efêmero, é uma revanche pública da banalidade."  Roland Barthes

O que é Fait Diver?

 Fait Divers (do francês fé-divér, que significa "fatos diversos") é definido como sendo os assuntos inclassificáveis pelos veículos tradicionais de comunicação. Um tipo de leitura que apresenta fatos curiosos e desconhecidos sobre o mundo, sempre com um interesse explícito pelo que é pitoresco e inusitado. São casos que acontecem por acaso, possuindo uma ambiguidade que pode, por vezes, provocar um incômodo taxonômico, monstruoso, incompreensível.
 Amu Cummings, editor do New York Sun, exemplificou perfeitamente o que é um fait divers: "Se um cachorro morder a perna de um homem, não é notícia; mas se um homem morder a perna de um cachorro, é notícia". Ou seja, é comum vermos cachorros mordendo as pernas de pessoas que eles instintivamente não gostam; mas não é normal um homem morder as pernas dos cachorros que ele não gosta, sendo a reação comum de um humano o de enxotá-los.

Capa do jornal Les Faits-Divers éditions n° 1, de 26 de outubro de 1905

Como surgiu o conceito de fait divers?

 O fait divers surgiu na França, no século XIX, junto ao advento de uma imprensa mais acessível ao público em geral, relacionada à expressão "imprensa popular a um tostão", o que marcou a disseminação de informações e a democratização do acesso à leitura. O conceito remete à notícia cotidiana, e está relacionado às notícias variadas, dotadas de uma importância circunstancial e constituídas de elementos relevantes que promovem a fomentação do entretenimento jornalístico. Dessa forma, o foco se torna o interesse do público em saber por que uma pessoa adotou uma atitude tão absurda, e a notícia adquire um cunho inusitado, sensacional e emocionante.

Quais assuntos podem ser enquadrados em um fait divers?

 Os fatos diversos podem cobrir: escândalos, fenômenos da natureza (como o nascimento de bezerros de duas cabeças, gêmeos grudados pelo ventre, uma criança com três olhos, anões extraordinários), suicídios, naufrágios, casos de canibalismo, crimes políticos, curiosidades humanas, bizarrices, crimes passionais, brigas de rua, atropelamentos, assaltos, mortes, violência, sexo, transgressões da lei, economia, guerras, espetáculos, ciências, desastres, raptos, agressões, acidentes, roubos, o passado, as causas e circunstâncias das coisas e entre outros.

Capa da revista L'OEil de la Police n° 290, datada do final de julho de 1914

Quais os benefícios dos faits divers?

 Os faits divers contribuem com a democratização da informação ao fazer uso de uma linguagem acessível a pessoas de todos os níveis de alfabetização. A estrutura de um fait divers tem como base os romances literários, ao apresentar fatos pitorescos que apelam ao imaginário da sociedade, que ─ assim como nos romances ─ busca um sentido maior nesses fatos.

Qual a estratégia utilizada para alavancar o fait divers?

 Antigamente, segundo a professora Fábia Dejavite, haviam apenas dois tipos de cultura: a cultura de elite/erudita (a alta cultura) e a cultura popular (a baixa cultura¹⁰). Nessa época, a cultura era dominada pela elite, pelos mais educados e refinados, sendo aqueles que determinavam o que poderia e o que não poderia ser visto e consumido como cultura. Com a comunicação de massa, isso foi sendo redefinido para se adequar a um público mais geral.
 Os livros e materiais impressos eram demasiado caros e inacessíveis pelo público menos abastado. Contudo, com a chegada da prensa de Gutenberg no século XV, a produção de livros tornou-se mais eficiente e, eventualmente, mais acessível. Isso permitiu a produção em massa de livros, panfletos e jornais, tornando a leitura e a informação disponíveis a um público mais amplo.
 Era chamado de "imprensa popular a um tostão", pois sugeria que tais publicações eram muito baratas e acessíveis a pessoas comuns, impactando significativamente a disseminação de conhecimento, a educação e a democratização do acesso à informação.
 Dessa forma, a estratégia que a imprensa utilizava era abordar sobre narrativas usando elementos textuais que buscavam atingir as classes subalternas, como: o estabelecimento de estereótipos, a massa de sentimentos e os modelos de heróis, o que fazia o público se identificar com as narrativas.

Livro Les Grands Faits Divers des Années 50 à nos Jours, lançado em 13/10/2022

Quando surgiu os primeiros fait divers?

 Antigamente, os fait divers surgiram em forma de folhetins, que ganharam espaço na França em meados de 1840, com a apresentação de obras como O Conde de Monte Cristo (1845) e Os Mistérios de Paris (1842), que abordavam sobre dramas da vida cotidiana e contextos históricos. Com o tempo, passaram a surgir os romances de estilo "desgraça pouca é bobagem" (análogo ao Doomscrolling¹¹), já que a população francesa se aproximou mais da violência com a ocorrência da Guerra Franco-Prussiana¹². O folhetim oferecia ao leitor um conhecimento de mundo que lhe permitia ter curiosidades não supridas apenas pela ficção, sendo apresentado à realidade através de fatos diversos sobre o mundo.

Quais são as principais características do fait divers?

 As principais características do fait divers são:
 • O seu aspecto imanente¹, o que permite que a informação seja compreendida sem a necessidade de um contexto, sendo constituído por uma estrutura fechada, sem duração e em sua totalidade.
 • O seu caráter articulado, já que a produção de um fait divers se faz através de dois termos que relacionam a informação, fato excepcional ou insignificante, com um fator inusitado.

Capa de revista Notícias Curiosas, do site Terra

O que é explicado sobre o fait divers?

 O fait divers é explicado através de algumas relações:

 Relação de Causalidade - Subdivide-se em 4 causas: causa conhecida, causa inexplicável, o inesperado e suspeita de caso.
 ↪ A causa conhecida se torna um fait divers por ser uma causa espantosa e aberrante. A causa também pode ser normal, esperada, dando destaque aos personagens da narrativa e não à motivação do ato.
 Por exemplo: "Idosa tem ataque cardíaco ao saber que lanchonete não vendia nuggets". O espanto não está no fato da idosa ter tido um ataque cardíaco, mas sim por ter sido por causa de nuggets.

 ↪ A causa inexplicável constitui um fait divers por não se saber imediatamente o que provocou o acontecimento, podendo ser dividida em prodígios e crimes. Esse atraso em descobrir a causa pode fazer o crime acabar no esquecimento. Consequentemente, o fait divers perde seu caráter efêmero, e desaparece.
 Os prodígios são fenômenos extraordinários e inexplicáveis, como milagres religiosos, fenômenos paranormais e discos voadores.
 Já os crimes são notícias que mostram causas diferidas, adiadas, o que instiga os telespectadores a acompanharem o desvendar do crime diariamente.

 ↪ A causa inesperada pode ser dividida 3 subgrupos: desvios causais, surpresa do número e milagre do índice.
 Os desvios causais são usados no fait divers ao substituir a causa esperada por uma causa inusitada. Isso pode gerar uma decepção que deixa a causalidade ainda mais notável, como no exemplo dos nuggets.
 A surpresa do número ocorre quando uma causa pequena produz um grande efeito.
 Por exemplo: "Urso de brinquedo é confundido com urso real". A causa é um simples brinquedo, mas o efeito produzido foi uma operação policial que envolveu até mesmo o uso de helicóptero.
 O milagre do índice explica que é o índice mais discreto que soluciona o mistério. Dessa forma, há um poder infinito nos signos, capaz de causar um sentimento de que tudo pode ser um "instrumento" para o crime e que eles estão em toda parte. Daí, surge também a responsabilidade do objeto, pois os objetos com a sua inércia produzem uma imagem de inocência. No entanto, em um crime, o objeto pode ter forte influência.
 Por exemplo: "Jovem morre eletrocutado ao mexer no celular enquanto ele carregava". O desvendar do crime estava justamente no aparelho celular, o que é inesperado.

 ↪ A causa de suspeita de acaso explica que a causalidade é paradoxal, já que ocorre uma desproporção entre a causa e o efeito. Além disso, fica suspensa entre o racional e o desconhecido. Dessa forma, toda causalidade é suspeita de acaso.

Jornal Meia Hora faz piada com saída de Fátima do Jornal Nacional (2011)

 Relação de Coincidência - É uma outra relação que busca estruturar o fait divers, e é subdividida em repetição, aproximação e cúmulo.
 ↪ A repetição é designada pela repetição de um acontecimento, como por exemplo, quando uma reportagem aborda sobre uma barbearia que foi assaltada pela quarta vez. Tal repetição traz geralmente uma interrogação, uma suspeita de que uma causa desconhecida esteja por trás dela. Isso faz com que a notícia se torne curiosa, dotada de certo mistério que estimula a imaginação do leitor. A crença de que "repetir é significar" está enraizada na consciência popular: a coincidência não pode ser inocente, mas deve ter um significado oculto.

 ↪ A aproximação une dois termos distantes: "Garotinha espanta quatro gângsteres" ou "Agricultores plantam uma árvore de peixe". Neste caso, o fait divers assume a função paradoxal de aproximar esses termos (bailarina e gângsteres/agricultores e peixe), diminuindo a distância entre eles. O que torna a notícia surpreendente é exatamente essa quebra de estereótipos: ninguém espera que uma garotinha enfrente quatro gângsteres ou que agricultores plantem peixes.

 ↪ O cúmulo refere-se ao exagero da coincidência, sendo uma expressão de uma situação de azar. A notícia, então, torna-se absurda: "Mulher ganha em loteria e morre atropelada na comemoração" ou "chefe de polícia comete um assassinato". A causalidade possui uma reviravolta: exatamente no mesmo dia em que ganha na loteria, a mulher morre; não só há um assassino, como este é o próprio chefe de polícia. Da mesma forma como a repetição faz minguar a essência de uma substância, o azar também possui um significado, passando a não ser mais um acaso. A relação de coincidência implica a ideia de destino, que é malicioso e constrói signos inteligentes que os homens são incapazes de decifrar: haveria então um deus por trás do fait divers, causando esses acasos.

Manchete do jornal Notícias Populares, do ano de 1971

Qual o efeito da popularidade dos faits divers na sociedade?

 A popularidade dos faits divers veio da curiosidade e diversão que os fatos proporcionam, e de características relacionadas ao efeito provocado nos leitores e telespectadores.
 Muitas vezes, os fait divers redigem artigos que fazem alusão a tabus e proibições da época a que se referem. Dessa forma, esses fatos ganham notoriedade por conta da fascinação provocada por tudo aquilo que é proibido, tornando-se um meio de expor os desvios referentes à moral e de reforçar o tipo de comportamento aceito pela sociedade.
 Como qualquer um pode protagonizar um fait divers, a notoriedade dessas notícias se torna mais crível e menos bizarra, pois o leitor se aproxima do fato assistido. As ocorrências de prováveis fait divers tornam-se oportunidades de alcançar a fama, ganhando ainda mais notabilidade numa sociedade que associa o "existir" com o "aparecer na mídia".

Manchete do jornal Diário de Noticias, publicado em 1951

Qual fator justifica o consumo dos fait divers?

 O consumo dos faits divers pode ser justificado como sendo devido aos fatos surpreendentes e inexplicáveis, sua notoriedade aumenta conforme os fatos são superexpostos para compensar a impotência gerada pela impossibilidade de explicá-los. Tal vazio de compreensão é preenchido por explicações de cunho místico ou religioso, apelando para o imaginário e a memória coletiva, aumentando ainda mais o apelo dos faits divers.
 Observa-se que as causas da notabilidade dos faits divers ligam-se à cultura romanesca (relativo a romances) da atual sociedade, já que tal tipo de notícia é construída na forma de um espetáculo, o que fica claro pelas semelhanças entre as plataformas, como: o apelo para o imaginário, a identificação dos leitores com os personagens e a pretensão moralizante de tais meios.

Quem foram os grandes difusores dos faits divers?

 Os grandes difusores dos faits divers foram os jornais New York World (da Pulitzer) e o Journal (de William Hearst). Antes da virada do século, os dois jornais alcançavam tiragens de até um milhão de exemplares.

Leia também: A Liberação das Drogas Daria Certo no Brasil?

Manchete do jornal Luta Democrática, edição 4.480, ano de 1968

Como os faits divers apresentaram-se na Imprensa Brasileira?

 No Brasil, os faits divers receberam várias alternativas de tradução, como: fatos diversos, notícias diversas, cenas de sangue, notas policiais e entre outros. Eles possuem suas particularidades, desde a maneira como têm sido escritos e os temas abordados, incluindo as variações que sofreram ao longo do tempo, até o cenário midiático brasileiro atual.
 O jornalismo brasileiro daquela época tinha como característica a mistura de notícias mais sérias com outras mais comuns e mundanas. Os textos utilizados para descontrair os leitores dos conteúdos mais "crus" eram os chamados folhetins, os antecessores das atuais telenovelas. Tais folhetins facilitaram a entrada dos fait divers nas publicações brasileiras. O sucesso com o público foi tremendo, principalmente por mostrar visões romanceadas da realidade, do seu modo. Essa "notícias diversas" eram caracterizadas pela mistura de elementos tradicionais da informação, frequentemente temperadas pela imaginação do autor, com melodrama e suspense, presentes também no folhetim.
 Eu particularmente considero os cordéis como um tipo de fait divers brasileiro, visto sua semelhança com os folhetins.

Quais são os maiores veículos midiáticos de fait divers no meio digital?

 No Brasil, a presença de fait divers se acentuou majoritariamente no meio digital, mais precisamente no YouTube, uma plataforma mundial de compartilhamento de vídeos e criação de comunidades virtuais separadas por nichos.
 Em meio a esses nichos, encontramos os chamados "canais de curiosidades", sendo aqueles voltados à apresentação de fatos diversos e atenuantes (nem sempre muito falados) sobre aspectos curiosos da sociedade, do homem, do mundo e do universo. Alguns dos canais de curiosidades mais conhecidos da internet brasileira são:

 Fatos DesconhecidosUm canal cujo conteúdo é voltado à exploração das áreas mais sutis da crendice humana, desbravando assuntos de true crime, histórias assustadoras, curiosidades sobre o mundo, casos conspiracionistas e fatos que não são muito difundidos no meio social popular. O canal é apresentado por diversos nomes, como Ivan Lima, André Benjamin, Guilherme Marques, Talyta Flores e entre outros. Cada apresentador põe sua própria personalidade na narração dos fatos.

 Você Sabia - Um canal cujo conteúdo é voltado a curiosidades do mundo, creepypastas, histórias conspiracionistas, tendências do mundo virtual e fatos sobre temas curiosos. O canal é dirigido e apresentado por Daniel Molo e Lukas Marques, dois dos youtubers mais conhecidos da plataforma. Os conteúdos do Você Sabia (junto à Fatos Desconhecidos) foram responsáveis por abrir um leque de possibilidades para muitos telespectadores, que passaram a se interessar pelos fatos diversos e iniciar seus próprios canais de curiosidades.

 Brasil Paralelo - Um canal cujo conteúdo é voltado à política, sociedade, análise profunda de casos criminais, reapropriação do tradicionalismo e patriotismo, filosofia e cultura. O canal foi fundado por Filipe Valerim, Henrique Viana e Lucas Ferrugem. A Brasil Paralelo, atualmente, tornou-se uma produtora audiovisual, lançando documentários inéditos em sua própria plataforma de streaming (BP Select).

 Não Adivinho - Um canal cujo conteúdo é voltado à famosos da internet, tendências do mundo virtual, true crime, memes e casos sem explicação. O canal é dirigido e apresentado por Marcelo Freitas. Os conteúdos de Freitas mergulham na sociedade mundial de forma curiosa e destemida, tratando de assuntos delicados para muitos sem a necessidade de viés sensacionalistas.

 Planeta Novo - Um canal cujo conteúdo é voltado à sociedade, notícias cotidianas e semanais, casos criminais que se passaram em solo brasileiro, além de casos de natureza conspiracionista. O canal é dirigido e apresentado por Bruno Fabil. Os temas abordados muitas vezes possuem conexão com o Brasil, o que dá ao canal uma extrema importância como difusor de informações que, infelizmente, são esquecidas por muitos com o passar do tempo.

 Stackz - Um canal de conteúdo voltado à tecnologia, casos criminais que tiveram participação da internet, hacking, Deep Web e programação. O canal é dirigido e apresentado por Gustavo Pinheiro. Stackz é um ótimo canal para cibermantes (gênios da computação), e a atuação de Pinheiro no aprofundamento de temas sombrios envolvendo a internet ajuda jovens e adultos a compreenderem os perigos do mau uso da internet e os limites que o mundo virtual possui (ou não).

Jornal Correio da Manhã, Rio de Janeiro, n.19, p. 2, 3 jul. 1901

Como o fait divers se consolidou nos séculos XIX e XX?

 O fait divers, em meados do século XIX, teve uma crescente popularidade entre as grandes massas, já que não exigia uma alta capacidade de compreensão e interpretação. Foi através do jornal O Estado de S. Paulo que o fait divers ganhou espaço na imprensa brasileira, onde havia uma seção de "Notícias Diversas" apenas voltada a essas notícias peculiares.
 Já o folhetim se tornou popular como romance em capítulos avulsos, publicados regularmente nos jornais. As antigas seções de "notícias diversas" contavam com um número expressivo de crimes e tragédias, ao contrário do que se vê na atualidade, onde as notícias curiosas, que quebram as expectativas dos leitores, são o maior destaque deste cenário.
 Mas foi no século XX que ocorreu a grande explosão dos faits divers. Rio de Janeiro e São Paulo estavam se tornando grandes centros urbanos, passando por inúmeras transformações estruturais e sociais.
 A ascensão da imprensa ocorreu devido à utilização de tragédias e presença de prodígios nos artigos da época, sendo um tipo de fórmula para a venda, que fazia efeito em função da intenção da elite do país de se aproximar do povo europeu.
 Outro fator que destacou os faits divers foram sua posição como veículos de circulação de crenças,  teorias, valores e referências integrando o discurso circulante da sociedade em que se propaga e atuando no processo de partilha da verdade.

Manchete de 1999, do jornal Folhetim

Qual era o público das seções de "notícias diversas"?

 As seções de "notícias diversas" tinham como público a grande massa de leitores, com os mais diversos níveis de alfabetização. A leitura acessível e romanceada do fait divers envolvia o leitor pela alteridade² que encerrava em si, especialmente nas notícias de tragédias, como suicídios. Toda essa representação, com a história superdimensionada pelo público, figura como modeladora do imaginário coletivo³, construindo e desconstruindo a todo o tempo "o outro".

Quais eram as principais características dos faits divers do século XX?

 Os faits divers traziam consigo traços da teoria determinista. Era comum ver adjetivações como "tresloucado", "desequilibrado", "frágil", "infeliz", "perverso", dentre outras formas de descrição que evocavam a posição social e a raça dos personagens envolvidos, o que gerava uma estigmatização ao tomar a origem e a genética do indivíduo como fatores determinantes de caráter, formando um gênero de discurso, ainda que buscasse demonstrar-se neutro.
 Os faits divers estão dentro de um contexto social e ideológico da época em que foi escrito. Eles retratavam de forma implícita os valores morais, as crendices e as proibições de um período. A construção dos relatos de suicídio revelava uma série de preconceitos em relação, por exemplo, às classes mais pobres e à cor da pele. Ainda havia, como explicação para a causa dos suicídios, os problemas financeiros sofridos pelos indivíduos.
 Os faits divers eram usados como uma ferramenta para aumentar a venda dos jornais, já que carregavam muitos traços de oralidade, retratando as classes mais pobres e explorando clichês da literatura como traições e outras desilusões amorosas.

Manchete do ano de 1977, do jornal A Província do Pará

Qual a relação dos fait divers com o sensacionalismo?

 Quando ocorre um fato que se enquadraria como fait divers - como algum crime ou catástrofe natural - sempre se discute o que pode ou não ser considerado sensacionalismo. Os fait divers como casamentos de celebridades, por exemplo, sofrem com a influência sensacionalista. Alguns meios tendem a influenciar na mente do público a ideia de que há uma grande relevância em saber quem venceu um determinado reality show, como vemos atualmente. Contudo, tais ideias não só se transformam em gatilhos para reflexões socioeconômicas ou políticas nos noticiários diários, como ainda geram exageros dos meios preocupados apenas com audiência, como alguns dos programas policiais diários da nossa TV.

Quais assuntos eram majoritariamente relatados nos faits divers?

 Os suicídios eram mais comuns de serem noticiados nos faits divers dos jornais, onde era perceptível uma escrita que mesclava a ficção com a realidade, ao utilizar recursos narrativos para apresentar a notícia e tornando o fato impactante em uma narrativa mais amena para entretenimento do leitor.

Manchete do jornal O Globo, Edição de 24 de Agosto de 1954

Como era a recepção do público aos relatos mórbidos dos faits divers?

 As publicações que continham divulgações de suicídios eram alvos de críticas e censuras, e muitos afirmavam que as notícias sobre suicídio poderiam influenciar outras pessoas a copiarem as ações dos personagens das notícias.
 Além disso, uma das críticas levantadas pelo público aos faits divers era o incômodo da elite mais abastada frente à exposição da realidade popular. Os cronistas que noticiavam o suicídio como fait divers mostravam a realidade do cotidiano das classes mais pobres, como imigrantes, trabalhadores fabris, mestiços e entre outros. Mesmo com todas as críticas, a imprensa da época continuou publicando casos de suicídio com um teor sensacionalista.
 A imprensa sensacionalista sempre foi recriminada pelos críticos por apelar aos instintos mais baixos do homem de transformar todo acontecimento estranho em um espetáculo. As informações acerca de questões mundiais alimentavam o intelecto, em suas colunas bem arrumadas. Já os artigos estampados em uma página inteira alardeando o povo com manchetes escandalosas eram um combustível para as paixões.

O que diferencia os fait divers de outros tipos de notícias?

 Os fait divers se destacam por darem visibilidade a coisas incompreensíveis, aos preconceitos e à tentação jornalística de explicar tudo e de forma imediatamente. Ao capturarem o acontecimento em meio ao caos nebuloso de seu desenrolar, os fait divers buscam mostrar o que tentam esconder.
 Um crime político, como a falência fraudulenta de uma multinacional, é uma informação parcial, cuja explicação depende de um contexto anterior e exterior ao fato noticiado, ou seja, é necessário um período longo de tempo para que o leitor obtenha todo o desenrolar da história, o conteúdo completo.
 O fait divers, por outro lado, é uma narrativa total, cuja narrativa é autossuficiente, pois o acontecimento não precisa do mundo para ser consumido, ou seja, é uma história isolada, sem conexões nem ramificações, não há continuações das notícias apresentadas. Ele apresenta uma estrutura fechada de pura imanência, contendo em si todo o seu saber. Daí, o gosto popular pelos casos sem importância num jornal, que opõem dois paradigmas, o da vida pública e o da esfera privada. São narrativas precisas, circunscritas dentro de limites observáveis; fatos que se apresentam, mas nem sempre se explicam.

 ¹ Alta Cultura - Trata-se de um produto realizado para uma elite, que opera dentro de uma tradição literária, estética, cientificamente definida. A produção deste tipo de cultura sustenta geralmente um elevado grau qualitativo, envolvido de uma aura de proteção institucional, há a perspectiva de uma vida durável do produto que produz e se pressupõe independente, ou quase, do público que lhe usufrui: motiva-se a produção de um produto "alto". A alta cultura destina-se a um público restrito, geralmente elitista, intelectual.

 ² Baixa Cultura - Trata-se de um produto popular, facilmente consumido, de pouca ou escassa qualidade, não destinado a duração no tempo, altamente estereotipado, geralmente produzido a um custo baixo. Este tipo de produção é destinado a um público o mais amplo possível - não culturalmente preparado -, pois é devido ao aspecto quantitativo da difusão que a cultura baixa trava a sua motivação produtiva.

 ³ Opinião Pública - Também conhecida como sociedade civil ou senso comum, trata-se da expressão da participação popular na criação, controle, execução e crítica das diretrizes de uma sociedade. Inclui as ideias consideradas corretas pela maior parte da sociedade, que seguem um padrão ético e moral que é subjetivo segundo a sua cultura, condições sociais e, às vezes, sua religião.

 ⁴ Folhetim - É uma obra literária inserida nos gêneros prosa de ficção e romance. É publicada de forma parcial e sequenciada em periódicos como nos jornais e revistas. O conteúdo apresenta uma narrativa ágil, uma profusão de eventos e ganchos intencionalmente voltados para prender a atenção do leitor. O folhetim surgiu na França, no início do século XIX, sendo importado para o Brasil logo depois e fazendo sucesso na segunda metade do século XIX. A trama geralmente consistia em um clichê, apresentando uma moça e seu par perfeito, cuja paixão é abalada pela presença de vilões.

  Doomscrolling - É a prática de consumir conteúdos deprimentes sem perceber que está consumindo conteúdos ruins para o seu psicológico. O doomscrolling pode fazer com que as pessoas se comparem com outras em um grau inédito. Isso cria padrões sociais inatingíveis, injustos e intimidadores. Sua popularidade cresceu em decorrência de eventos traumáticos como a pandemia de COVID-19.

Leia também nosso artigo sobre o racismo sofrido por asiáticos no período da Pandemia, clicando aqui.

  Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) - Foi um conflito que ocorreu entre a França e a Prússia (um dos estados alemães), desencadeada por uma combinação de tensões políticas, territoriais e diplomáticas. A principal causa do conflito foi a disputa pela sucessão do trono espanhol, que estava vago, e um parente da família real prussiana foi oferecido como candidato. Isso preocupou a França, que temia a possibilidade de uma aliança entre a Prússia e a Espanha, cercando a França por territórios controlados por estados germânicos. O resultado da guerra foi a unificação da Alemanha sob a liderança da Prússia; a proclamação do Império Alemão em 1871; a alteração do equilíbrio de poder na Europa; e repercussões duradouras nas relações internacionais.

  Aspecto Imanente - Significa a presença interior de algo, uma qualidade como parte de um ser ou do ser como parte dela. É um conceito filosófico e ontológico considerado antiético ao conceito de transcendência, que é o caráter daquilo que é exterior e superior em relação à essência de algo.
 Imanência vem do latim immanēns, que significa "permanecer dentro". Já a transcendência, significa "ir além".

 ⁸ Memória Coletiva - É um conceito historiográfico definido como um repositório abstrato de informações referentes a uma comunidade, grupo ou lugar constituído a partir de memórias individuais em seu processo de interação social. É composta de símbolos, histórias, narrações e imagens que participam da construção identitária de determinado conjunto de indivíduos. A memória coletiva é nada mais que um conjunto de memórias - mais ou menos conscientes de uma experiência vivida ou mitificada por uma comunidade - cuja identidade é parte integrante do sentimento do passado.

Leia também: Estamos todos conectados?

  Alteridade - É a ideia de que todo ser humano social interage e é interdependente do outro. Dessa forma, a existência do "eu individual" só é permitida mediante um contato com o outro, ou seja, a sociedade, que por si só é diferente do indivíduo. A alteridade é também a capacidade de se colocar no lugar do outro na relação interpessoal, com consideração, identificação e diálogo com o outro. Além disso, a alteridade também é indicada como sendo a capacidade de enxergar o outro como um sujeito, e não apenas como um corpo desprovido de vivências, de subjetividade, de história e de humanidade. Não significa que tenha relação com concordância, mas sim de aceitação de ambas as partes.

 ¹⁰ Imaginário Coletivo - É um conjunto de símbolos, conceitos, memória e imaginação de um grupo de indivíduos pertencentes a uma comunidade específica. O que reforça o sentido de comunidade é a sensibilização dessas pessoas em relação a esses símbolos compartilhados. Isso pode ultrapassar as circunstâncias do mundo real, tornando-se ícones de uma era, parte da história de um povo, um patrimônio comum, independente de religião política e cultura dos indivíduos que fazem parte da comunidade.

 ¹¹ Determinismo - É a teoria de que todo acontecimento, físico ou psicológico, é explicado pela determinação, por relações de causalidade. Há vários tipos de determinismo, sendo cada um definido pelo modo como determinação e causalidade são conceitualizados.

 ¹² Sensacionalismo - É um viés editorial na mídia em massa em que os eventos e temas em notícias e partes são mais exageradas para aumentar os números de audiência ou de leitores. Pode incluir relatórios sobre assuntos geralmente insignificantes e eventos que não influenciam a sociedade em geral e apresentações tendenciosas de temas de interesse jornalístico de uma forma trivial ou tabloide. Algumas táticas sensacionalistas fazem uso de apelos emocionais intencionalmente omitidas de fatos e informações, agindo no intuito de obter atenção.


 Chegamos ao fim de mais um artigo. Comente sobre qual a notícia mais bizarra que você já viu em manchetes de fait divers, vamos interagir! Compartilhe com quem gosta de jornalismo e do nicho de curiosidades.
 Gostaria que eu fizesse uma pesquisa aprofundada sobre um assunto específico? Mande sua sugestão para o e-mail delartiel@gmail.com!
 Os meus artigos buscam servir como uma introdução para um assunto específico, com termos explicados e detalhes aderidos. A forma como abordo um tema é criando questionamentos sobre ele, tratando de explorar seu aspecto teórico, metodológico e conceitual.
 Muito obrigado por terem aguentado todos os parágrafos, e até a próxima!


Fontes Bibliográficas

 • O Poder do Fait Divers no Jornalismo: Humor, Espetáculo e Emoção, escrito por Fábia Angélica Dejavite.
 • Il mercato dei sogni: introduzione alle comunicazione di massa, escrito por Giovanni Cesareo.
 • O que é doomscrolling?, disponível no site Sprout Social.

 • O que é o fait divers, escrito por Ana Maria de Alencar.
 • A Estrutura dos Fait Divers, escrito por Roland Barthes.
 • Les Grands Faits Divers des années 50 à nos jours, escrito por Patrick Mahé.
 • Candomblé: Repressão através dos jornais no século XX, escrito por Juliana Souza.
 • Le journal "L'Oeil de la police": le fait-divers en demie teinte, disponível no site Caricatures & Caricature.
 • Jornal Meia Hora faz piada com saída de Fátima do Jornal Nacional (2011), disponível no site BNEWS.
 • 50 anos de 'Notícias Populares', disponível no site Folha de S. Paulo.
 • Jornal Correio da Manhã, disponível no site Revistas Eletrônicas da UFPI.
 • Magazine L'OEil de la police numéro 290, disponível no site Wikipédia, a Enciclopédia Livre.
 • Couverture du journal Les Faits-Divers illustrés n° 1, disponível no site Wikipédia, a Enciclopédia Livre.
 • Fait Divers, disponível no site Wikipédia, a Enciclopédia Livre.
 • Imanência, disponível no site Wikipédia, a Enciclopédia Livre.
 • Alteridade, disponível no site Wikipédia, a Enciclopédia Livre.
 • Imaginário Coletivo, disponível no site Wikipédia, a Enciclopédia Livre.
 • Folhetim, disponível no site Wikipédia, a Enciclopédia Livre.
 • Memória Coletiva, disponível no site Wikipédia, a Enciclopédia Livre.
 • Sensacionalismo, disponível no site Wikipédia, a Enciclopédia Livre.
 • Opinião Pública, disponível no site Wikipédia, a Enciclopédia Livre.
 • Determinismo, disponível no site Wikipédia, a Enciclopédia Livre.
 • ChatGPT.

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